A odisseia do negro não desaparecia com a abolição e sua integração na vida ativa do povo norte-americano continuava a ser impedida (a Ku Klux Klan, os grandes fazendeiros e determinados grupos políticos combatiam a emancipação e perseguiam o negro). O blues refletia de perto as angústias desse período no qual o negro era considerado um ser inferior sem acesso aos direitos legais e humanos; através desses cantos profundamente realistas e impregnados de carga emocional ele transmitia seu estado de espírito e sua imagem de dor (salários de fome, despreparo técnico e cultural, crises econômicas, linchamentos, choupanas inundadas, mágoas, desilusões, segregação, miséria, desconforto, etc.). Entretanto, os versos dos blues, mesmo desprovidos de sintaxe, representavam - como afirma
Jean Cocteau - uma autêntica e importante contribuição literária de inspiração popular. Constitui o ponto culminante da música do negro e o marco inicial da caminhada do jazz.
Surgiu, segundo Rui Blesh, por volta de 1870, com o fim da guerra civil e sua primeira difusão se deu através dos
"minstrel-shows", espetáculos ambulantes. Não possuía ainda uma forma definitiva, porém já adotava determinadas características que se tornariam essenciais. A repetição do primeiro verso de cada estrofe revelava o espírito antifônico e responsório (chamada-resposta) próprio dos cantos africanos; a caracterização era centralizada na maneira toda especial da execução. Enquanto o branco, cantando, se limita a acenar ao compasso, o negro
"brinca" com a voz, usa o falsete, desafina propositadamente, grita, gesticula, assume expressões faciais dramáticas, balança o corpo, etc.
O blues primitivo (rural, arcaico, country-blues), de estilo rude, era exclusivamente vocal, com acompanhamento de violão, banjo, gaita. Seu repertório era limitado e os intérpretes eram quase sempre de sexo masculino.
O blues urbano (city-blues, urban-blues, jazz-blues) surgiu depois. Era cantado por mulheres em salões e espetáculos; os assuntos abordavam também temas sentimentais e era admitida maior atuação instrumental (piano ou pequena orquestra). Desse tipo de blues derivariam outras formas (rhythm and blues, soul-blues, rock).
Os cantos entoados pelos negros durante o trabalho, no início do século XX dariam origem ao Blues.
"Blues", convém lembrar, significa tanto
"azul" (e, como no Brasil,
"blue" também serve de termo pejorativo para um negro de pele muito escura) quanto
"triste, melancólico, deprimido", além de
"muito erótico" (o que explica o título de True Blue de um LP de Madonna dos bons tempos, trocadilho com a expressão
"true blue",
"muito sincero"). Pois bem, o blues expressa muito bem estas sensações de melancolia (ou, quase sempre, uma
"alegria triste") e sinceridade. O blues é o mais notório resultado da aculturação do negro africano pelos brancos norte-americanos, ou seja, do esforço do negro em se adaptar à cultura branca norte-americana. E a maior distinção do blues é a
"nota blue", a
"blue note", na escala de sete notas usada nas melodias do blues, derivada das
"work songs" escravas.
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A música européia reconhece quatro espécies de escala menor:
. natural (dó, ré, mi bemol, fa, sol, lá bemol, dó);
. melódica ascendente (dó, ré, mi bemol, sol, lá, si, dó);
. melódica descendente (dó, ré, mi bemol, fá, sol, lá bemol, si bemol, dó); e,
. harmônica (dó, ré, mi bemol, fá, sol, lá bemol, si, dó).
Pois bem, o negro criou uma quinta escala menor, chamada justamente
escala de blues (dó, mi bemol, fá, fá sustenido - opcional -, sol, si bemol, dó), e boa parte do apelo do blues deve-se ao choque resultante desta escala menor, cantada ou tocada com acompanhamento de acordes maiores. O esquema de 12 compassos:
. tônica (3 compassos);
. tônica com sétima (um compasso);
. subdominante (2 compassos);
. tônica (2 compassos);
. dominante (2 compassos); e,
. tônica (2 compassos).
As composições musicais do blues obedecem geralmente a um mesmo esquema característico. As letras sempre se dividem em estrofes de duas linhas, com a primeira linha cantada duas vezes, e essas estrofes são cantadas em frases musicais de 12 compassos, com os acordes do acompanhamento seguindo geralmente o esquema A-A-B (exemplo:
"West End Blues").
Às vezes, porém, existem blues
"irregulares" (
"Careless Love", de 16 compassos, Tishomingo Blues, de 32).
Careless Love
Tishomingo Blues
Inicia normalmente com um break, espécie de livre cadência ao redor das primeiras notas da melodia que, depois de um acorde dissonante, somente vem revelada depois de alguns compassos, geralmente o quinto.
Os blues são escritos de preferência em modo maior e obedecem a um determinado esquema cadencial (reflexo da tradição européia) baseado sobre os graus I, IV e V da escala diatônica, admitindo variantes. Devido ao freqüente abaixamento das notas modais, da sensível e também da dominante (blue-notes) a composição a composição adquire uma expressão amodal, impregnada de um fascínio especial desconhecido pela música tradicional. Intensivo é o uso da síncope e da variedade rítmica.
O jazz nada mais seria que a aplicação do blues nos instrumentos europeus. E em sua estrutura encerra todos os elementos básicos (breque, síncope, blue-notes, variação rítmico-melódica, swing, rag, vibrato, glisando, etc.).
Estas estruturas de música e letra quase não têm paralelo na música européia. Como diz o pesquisador de jazz Marshall Stearns,
"talvez nunca venhamos a saber a data do primeiro blues; quanto mais aprendemos a respeito, mais cedo parece ter sido." Já se cantava blues na segunda metade do século XIX, nos grandes centros rurais norte-americanos, como os Estados do Mississipi e do Texas, à capela ou com acompanhamento simples de violão, gaita ou banjo; com as migrações para grandes centros urbanos, como Chicago, Nova York e Nova Orleans, veio a necessidade de se entreter barzinhos cheios de gente e o blues, além de usar instrumentos tipicamente urbanos como bateria, contrabaixo e saxofone, voltou a gritar como na época dos escravos.
Há muitos bluesmen (e blueswomen) importantes que poderiamos destacar, como William Christopher Handy (1873/1958, não especificamente bluesman, mas autor de dois dos primeiros clássicos do gênero,
"Memphis Blues", 1912 e
"St. Louis Blues", 1914), que se autoproclamou o pai dessa forma musical, Clarence Williams (
"Basin Street Blues"),
Spencer William
("West End Blues"). (se quiser ver novamente, suba para o primeiro vídeo deste texto sobre blues).
Dos intérpretes lembremos: Blind Lemon Jefferson (1897/1929), Blind Blake, Robert Johnson (1911?/1938), Charley Patton (1887/1934), Leadbelly (1889/1949), Tampa Red, Lonnie Johnson, Big Bill Broonzy, Sonny Terry, B. B. King, Muddy Waters, Sonny Parker, Jimmy Rushing, etc. Das cantoras: Gertrude
"Ma" Rainey (1886/1939)(a mãe do blues), mas é bom lembrarmos que quem abriu o caminho para artistas negros de blues chegarem ao disco foram as damas, como Bessie Smith (1894/1937) (a imperatriz do blues), Mamie Smith (1883?/1946?), que temperavam o blues com influências teatrais do vaudeville e dos shows de menestréis (de que falaremos mais à frente), tornando-o mais acessível ao público branco. Inclusive a primeira que gravou, em 1920,
"Crazy Blues", lançado por Mamie Smith nesse ano, vendeu quase instantaneamente três milhões de cópias (muitas das quais piratas e ao triplo do preço!). E ainda, Ida Cox, Bertha Chippie Hill, Virginia Liston, Clara Smith, Billie Holiday, Ella Fitzgerald, Aretha Franklin, Ma Raney, Blind Lemon Jefferson, Lightnin' Hopkins, Robert Johnson, T-Bone Walker e Muddy Waters, entre outros. Convém lembrar que o cantor lírico não pode cantar blues. Como resumiu um pesquisador americano: se não fosse por estas
"blueswomen", e improvável que um Robert Johnson tivesse chegado a gravar.
O blues evoluiu, conheceu o auge na década de 20, dominou o país e influenciou o jazz, tornando-se sua essência. Não cessou de evoluir e ainda vem sofrendo transformações, graças às quais se formaram novas estruturas para as várias modalidades do jazz (swing, bop, cool, free, hard, etc), bem como da música popular. O blues era também dançado.
No próximo post você verá Gospel e Música Religiosa ...